domingo, 23 de outubro de 2011

Gestão de Negócios e Estado de Necessidade: Institutos semelhantes, natureza diversa.



A gestão de negócios, disciplinado no Código Civil, e o estado de necessidade, previsto no Código Penal, são institutos com caracteres semelhantes ou totalmente distintos? Pelo menos na prática, em que pese aquele ser matéria de Direito Privado e este de ordem Pública, há alguns pontos similares.
A gestão e o gestor de negócios, aqui tratados, nada têm a ver com negócios empresariais, comerciais ou congêneres. Neste instituto não está presente nenhum objetivo limitado à atividade profissional ou lucrativa. Mas caracteriza-se, principalmente pelas práticas que visam o benefício e preservação do patrimônio de outrem. Trata-se de uma conduta, pelo menos em tese, altruística.
O Diploma Civil preceitua que “aquele que, sem autorização do interessado, intervém na gestão de negócio alheio, dirigi-lo-á segundo o interesse e a vontade presumível de seu dono, ficando responsável a este e às pessoas com quem tratar”. Em consonância ao dispositivo transcrito, percebe-se tratar de fonte unilateral de obrigações.
Diferentemente do contrato de Mandato, em que há manifestação de vontade de uma parte (mandante) para que outrem (mandatário) pratique atos formais em seu nome, na gestão de negócios inexiste acordo de vontades. Não há negócio jurídico, mas ato jurídico. Trata-se de intervenção de alguém em negócio alheio, sem autorização do titular, em seu interesse e de acordo com sua vontade presumida.
Note-se que haverá, como requisito essencial, a vontade presumida. Caso seja contra a vontade manifesta, ou até mesmo presumida do titular, não haverá gestão de negócio e estará caracterizado ato ilícito e os prejuízos decorrentes deste sobrevirão ao gestor.
É, ainda, imprescindível o critério da necessidade, e não da utilidade. Trata-se de uma atividade excepcional que visa à conservação de negócio alheio. Negócio alheio é tratado no dispositivo legal como qualquer atividade de ordem material ou jurídica de outra pessoa.
Observa-se gestão de negócios quando, por exemplo, uma pessoa viaja por longos dias e deixa uma torneira aberta em sua residência, desperdiçando água e danificando alguns móveis sensíveis à umidade. Imagine que um vizinho, percebendo sua ausência, “arromba” a porta e entra em sua casa para fechar a torneira e impedir maiores prejuízos. Percebe-se que não há interesse profissional ou lucrativo, mas a intenção de ajudar, com a vontade presumida do dono, haja vista que a conduta evitou o perecimento de bens do titular.
O Estado de Necessidade, por sua vez, trata-se de uma excludente de antijuridicidade prevista no Código Penal, que assim preceitua: “considera-se em Estado de Necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, era razoável exigir-se”.
Para haver o Estado de Necessidade é indispensável que o bem jurídico do sujeito esteja em perigo para que ele pratique o fato típico a fim de evitar um mal que poderia ocorrer se ele não o fizesse. É necessário que o sujeito atue para evitar um perigo atual. Tal como na gestão de negócios, é necessário que exista a probabilidade de dano a um bem.
No mesmo exemplo do viajante que deixa a torneira jorrando água, poderia se imaginar que o “arrombamento” da porta pelo vizinho se caracterizasse crime de dano (art. 163 do Código Penal). E então surge a questão: trata-se de “gestão de negócios” ou “estado de necessidade”? A similaridade é visual.
Contudo, as semelhanças e diferenças entre os dois institutos podem ser observadas quando o Código Penal dispõe sobre “salvar de perigo atual direito próprio ou alheio”, enquanto o Código Civil disciplina que o gestor “intervém na gestão de negócio alheio”. No primeiro, o agente irá salvar um direito seu ou de outrem, já no segundo é excepcionalmente negócio alheio. No instituto Penal, o bem pode ter valor não patrimonial (como a vida e integridade física); no instituto privado, o negócio tem conotação patrimonial (o que não impede que o bem tenha valor sentimental).
Em ambos os casos o agente ou o gestor atuará sem a autorização do titular do bem. Os estudos penais não falam sobre vontade presumida. Fica implícito, porém, que, no estado de necessidade, a vítima, ou o titular do direito, tem interesse presumível na intervenção de alguém que, mesmo sacrificando um bem material, venha salvar do perigo direito seu. Como no clássico exemplo em que o agente “arromba” a porta de uma pessoa para salva-la de um incêndio, a vítima, ou titular do bem jurídico, não solicitou a intervenção, mas presume-se a sua vontade em razão das circunstâncias.
Como é típico dos institutos privados, na gestão de negócios, o gestor poderá ter ressarcidos os valores eventualmente empregados para salvar o bem da iminência do perecimento (pode ter contratado um chaveiro para abrir a porta, em vez de arrombá-la). De tal modo, o gestor poderá indenizar o titular do direito, no caso de excesso (arrombar a porta e a janela desnecessariamente) ou na atuação contra a vontade manifesta deste.
O estado de necessidade, em suma, visa proteção do bem jurídico mais valioso que negócios (podendo ser a vida), de ordem pública, portanto, no qual o Estado, não podendo atuar, concede a terceiro a faculdade de agir, a fim de acudir o direito próprio ou alheio. Nesse caso, o agente também pode responder criminalmente pelo excesso que cometer.
Ambos os institutos são semelhantes em seus aspectos humanísticos e práticos, visam à proteção de um bem jurídico, de um direito, e até mesmo da vida. Mas a sua natureza e efeitos são distintos e não se confundem.

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